"Ir à Lua aprender" - artigo de Eduardo Sá
"1. A escola magoou-me, quase todos os dias. E foi por isso que só muito tarde descobri que ela podia ser a minha casa. Nunca percebi porque é que a gramática tinha de se aprender com lágrimas. E porque é que, se tínhamos de ser amigos uns dos outros, a Irmã Camila nos batia para aprendermos a escrever sem erros, no ditado. Para mim, o melhor das aulas era estar na Lua. Mentia, fazendo de conta que estudava os verbos ou a tabuada e, debruçando a cabeça sobre a mesa, fazia de cada pensamento um foguetão. Reconheço que ainda hoje não entendo porque é que pensar é estar na Lua. Mas, sempre que podia, fugia para lá. Eu nem gostava por aí além de andar na Lua. Mas gostava muito menos de estar nas aulas. Olhando para trás, acho que mentíamos todos um bocadinho uns aos outros: a Irmã Camila achava que se nos lembrávamos das coisas era porque talvez as soubéssemos; e nós, ao repeti-las sem as percebermos, fazíamos de conta que ela tinha razão. Foi por isso que quando entoei, a meio do exame da terceira classe, o nome de todos os astronautas da Apolo IX, e escutei um zurzir de pasmo atrás de mim, fiquei preocupado. Na verdade, nunca tinha imaginado que uns senhores vestidos de branco, aos saltinhos pela Lua, fossem uma festa para tanta gente. E, ao ver os olhos humedecidos dos meus pais, compreendi que os adultos são demasiado imprevisíveis (porque supunha que os faria mais felizes com a matemática, por exemplo). Foi então que comecei a achar que o grande problema de me perder na Lua não passava tanto por fugir para lá. Mas, ao contrário dos astronautas da Apolo IX, por andar – Lua-a-baixo, Lua-a-cima – sozinho, em silêncio e às escondidas. Mais tarde, ao jogar futebol com a Irmã, rasteirei-a. Sem querer, suponho. Mas ainda a tempo de perceber que a desculpava. (Apesar de todas as vezes em que foi injusta e batia ao Gaspar, como se ele só pudesse aprender com muitas dores e quase nunca a brincar e sem dar por isso.) E a tempo de gostar dela. Quando ela me estimava eu ia à Lua. Agora, mais às claras. De mão dada na dela. E foi assim que, aos poucos, a escola passou a ser também a minha casa. Hoje, não sei se o primeiro passo na Lua representou um salto para a Humanidade mas, para mim, transformou o exame da terceira classe no meu primeiro dia de escola.
2. É importante falarmos da escola com justeza. Porque são de menos as pessoas que, na escola, se surpreendem com magia. São de menos as histórias que as comovem. E são de menos os conhecimentos que as divertem, as remexem e as arrumam. É por isso que devemos dizer que não é verdade que a escola seja um lugar ameno e divertido onde caiba toda a gente: os cobardes e os audazes; os atinados e os rebeldes; os preguiçosos e os tenazes. E que não é verdade que, à parte do cheiro dos livros quando são novos, eles se tornem apetitosos e que apeteça folheá-los. E que seja gostoso acordar para a escola todos os dias, a não ser quando se tem uma visita de estudo, um torneio seja do que for ou no último dia das aulas. E que não é verdade que os professores sejam, todos eles, amigos do conhecimento e que o acarinhem. E que percebam das crianças: imaginem como elas pensam, que sintam o seu olhar e o interpretem e que as ajudem a descobrir que somos sábios sempre que descobrimos, dum jeito mais simples, para que serve tudo aquilo que sabemos. Não é verdade que a escola acarinhe a curiosidade e aconchegue os pensamentos, os vista com palavras e ensine que falar ajuda a conhecer. E que seja amiga das conversas. Que acarinhe as contradições e as ligue umas nas outras, e desafie para compreender (que é o contrário de condescender). E que impeça de se repetir a mesma solução enquanto não se descubram novos problemas. E que não permita que se deslinde, porque conhecer é alindar. E não deixe que ninguém caia em si, só por acaso, porque quem não aprende de dentro para fora não desvenda: só se enfeitiça. Não é verdade que as crianças fiquem mais sábias com a escola. E que se tornem mais transparentes, mais verdadeiras e mais bonitas. E que, depois de cada descoberta, só lhes apeteça correr para o futuro. Em resumo, as crianças não gostam da escola quando a escola não gosta das crianças. Isto é: se eu mandasse, só devia aprender quem fosse à Lua!"
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