"O ensino do português ganhou novo alento esta semana. Aqueles alunos enfastiados que perguntam para que raio lhes servem os conhecimentos de gramática na vida real devem estar muito envergonhados com o atrevimento da sua ignorância. Sobretudo os que sonham fazer carreira nas autarquias locais. Não sei se o leitor acompanhou o caso político-gramatical. Foi o seguinte: quando a lei da limitação dos mandatos autárquicos foi aprovada dizia que o presidente de câmara que completasse três mandatos não poderia recandidatar-se. Mas, oito anos depois, Cavaco Silva veio assinalar um erro na lei: a versão original não dizia "presidente de câmara", dizia "presidente da câmara". É uma diferença subtil mas importante. Que Cavaco era um leitor atento e exigente já nós sabíamos desde que, para espanto da academia em geral e da academia sueca em particular, criticou os livros de Saramago por terem demasiadas vírgulas. Desta vez, o crítico desviou a sua atenção da pontuação para as preposições. Onde se lê um "de", deve ler-se um "da". Não é apenas a preposição "de" que deve estar na lei, é a contracção da preposição "de" com o artigo definido "a". A mudança implica o seguinte: se um presidente "de" câmara não pode recandidatar-se depois de três mandatos, a sua carreira autárquica acaba; mas um presidente "da" câmara não pode recandidatar-se apenas à câmara específica a que preside. Mas pode recandidatar-se à do lado. Ou a outra qualquer. Há 23 letras no alfabeto, mas Cavaco indicou a única que podia beneficiar os dinossáurios autárquicos.
O objectivo da lei de limitação de mandatos era evitar que os autarcas se eternizassem nos cargos, por se entender que a rotatividade no poder é uma parte importante da democracia. A lei emendada considera o mesmo, mas numa parcela de território de cada vez. Para esta lei, é repugnante que um autarca se mantenha num cargo para além de um determinado período, a menos que se mova democraticamente uns quilómetros para o lado. De acordo com a lei que diz "de", um autarca pode deter o cargo de presidente de câmara por três mandatos - ou seja, durante 12 anos. A lei que diz "da" limita os mandatos autárquicos a três por município. Como há 308 municípios em Portugal, um autarca fica limitado a 924 mandatos. Uma vez que cada mandato dura quatro anos, em teoria um autarca só consegue manter-se no poder durante 3 696 anos seguidos, findos os quais terá de ir procurar emprego na sociedade civil. Ou seja, os dinossáurios autárquicos têm os dias contados. Os verdadeiros dinossáurios dominaram a terra durante cerca de 135 milhões de anos, e os dinossáurios autárquicos apenas poderão fazê-lo por escassos 3 696. Com a nossa legislação não brincam."
Texto de Ricardo Aráujo Pereira publicado na Visão
Comentário: Tanto coisa neste país sobre a qual o presidente da república se podia, e devia, pronunciar, escolhendo, na grande parte das vezes, o silêncio! Mas esta nuance gramatical não escapou ao seu, ou aos dos seus, olho clínico. Resultado: more job for the boys! É caso para dizer: perdeu uma bela oportunidade de estar calado...
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